segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Gênero e funk na escola

(clique no título acima para ver a postagem completa)


 "Sou feia mas to na moda": o funk carioca, a mercantilização do corpo e o feminismo" 




O documentário: algumas considerações.

O documentário "sou feia, mas tô na moda" com direção de Denise Garcia traz um pouco sobre história do funk brasileiro, sua origem, seus "inspiradores" e sua relação com: a violência na década de 90 e com o prazer nos anos 2000. Além disso, problematiza questões sobre a cultura do funk, o preconceito, a discriminação, o sexo, machismo e feminismo através de relatos de mc's, dj's e das moradoras e moradores das favelas cariocas.
O documentário começa no Rio de Janeiro, na favela Cidade de Deus, local em que
se iniciou o movimento do funk sensual Antes o funk representava a voz do morro e era dividido entre o funk do lado A e do lado B. A transformação ocorreu com as bandas “Bonde faz gostoso”, “Gaiola das popozudas”, “Tati, quebra barraco”, entre outras, que são a base do funk carioca atual.
A história é narrada a partir do depoimento da MC Deize Injeção, primeira cantora a dar voz à liberação sexual feminina no funk. Esta opção narrativa deixa evidente a intenção da cineasta de problematizar a figura da mulher no funk e, consequentemente, na sociedade. Uma moradora relata que: “Antes as mulheres eram acanhadas e submissas. A música incentivou a botar esse sentimento pra fora. O funk alerta as mulheres”. Um exemplo disso é a música “Ginecologista”, do grupo Juliana e as fogosas, que alerta sobre a saúde e aconselha consultas médicas. Katy Lira, uma pesquisadora, diz que, quando as funkeiras são indagadas se são feministas, estas dizem que não, no entanto o discurso delas é totalmente feminista. Para Fernando Luís Mattos da Marra, o DJ Marlboro, que levou o funk para apresentações no exterior, dando enorme popularidade ao gênero, “Tati fala por todas as mulheres, em busca de direitos iguais, ela é feminista sem cartilha, aprendeu pela vivência”.
Valeska, da banda Gaiola das Popozudas, relata que "Às vezes o homem é cachorro, vagabundo, enquanto a mulher faz tudo e ele vai procurar outra na rua. Antigamente as mulheres apanhavam, eram xingadas e abaixavam a cabeça. Já hoje elas trabalham, se mantém sozinhas, cuidam dos seus filhos e são guerreiras".
Numa matéria da Revista Super Interessante, Carla Rodrigues, jornalista, professora e doutora em Filosofia (PUC-Rio), diz: “Quando cantam suas letras consideradas obscenas, as funkeiras reivindicam o direito ao prazer sexual, denunciam a opressão e ainda rompem padrões de beleza. Elas são muito bem-vindas ao movimento feminista.”.
O funk e o movimento feminista atual.

 O funk surge na década de 1960 e fica famoso com a voz e o swing de James Brown. Com uma dança mais rápida e mais envolvente que a soul music em pouco tempo o funk ganhou um vasto território na música negra estadunidense. Assim como o Rap e o Hip Hop, o funk surge como um meio de protesto, que busca denunciar a violência sofrida pelo negro ao longo de sua história na sociedade.
Em 1970, nos bailes de música black, ainda predominava a soul music, porém o quadro mudou em 1980, quando o funk apareceu pela primeira vez nesses locais. O funk foi rapidamente aceito pela juventude carioca, que buscava um novo movimento para se identificar. “O samba foi apropriado por vários gêneros musicais, o que resultou num processo constante de hibridização cultural e musical” (BONFIM, 2013, p. 01).
Portanto, na visão dessa juventude, o samba não poderia mais representá-los à altura. Essa identificação se torna ainda maior quando, em meados da década de 1990, o DJ Marlboro lança um álbum totalmente composto por funks em português. A maioria das faixas do álbum continha letras que denunciavam as mazelas sofridas nas periferias do Rio de Janeiro, assim como o dia-a-dia das pessoas dessas comunidades.
Por volta de 1996, na Cidade de Deus, os bailes funk estavam dominados pelas brigas. Em meio à isso, o DJ Duda, que comandava o baile do Coroado, resolve abrir o palco para quem quisesse expor suas composições, foi ai então que Deize Maria Gonçalves, posteriormente conhecida como Deize Tigrona ou Deize injeção, subiu ao palco e logo ganhou a aceitação do público com suas letras que retravam suas experiências de vida de uma forma sensualizada. Esse ato também inspirou outras mulheres, que tomaram coragem para subir aos palcos e divulgarem seus trabalhos. Nomes como Valeska Popozuda e Tati Quebra-Barraco surgem nessa época com letras de um teor que poderia ser tido como feminista e ao mesmo tempo provocativo e sexualizado.
Para muitas mulheres da Cidade de Deus, o funk as ajudou à deixarem de ser acanhadas e as deu voz em meio à opressão sofrida no dia-a-dia. Algumas letras de funk alertam até as mulheres a procurarem o ginecologista. Neste sentido, as questões do movimento feminista liberal trazidas no texto de Manuel Castells surgem como princípios deste movimento das funkeiras:
[…] o feminismo é “ o compromisso de pôr fim à dominação masculina […] O feminismo liberal concentrou seus esforços na obtenção de direitos iguais para as mulheres […] envolvendo desde o direito a salário igual até os direitos de reprodução, incluindo direito de acesso a todos os cargos e instituições. (CASTELLS, 1998, p.213)

Porém, o movimento funk “sensual” é fortemente criticado pelas pessoas que não estão inseridas na realidade das periferias e da vida da mulher periférica. O fundamento da crítica está no fato das funkeiras usarem o corpo e a sexualidade como base para suas músicas. As cantoras são abertamente taxadas de “vadias” e “vagabundas”. Nesse ponto se torna importante citar Joan Scott, quando ela faz uma referência à Catherine Mackinnon, onde essa diz que: “A sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é para o marxismo: o que nos pertence mais e, no entanto, nos é mais alienado”. (SCOTT, 1986, p. 09).
É graças à transformação do mercado de trabalho que a mulher é inserida neste, e passa a ter autonomia de sua vida (CASTELLS,1998), assim como as funkeiras, o trabalho delas e sua renda provém do funk. Além do controle do próprio corpo através dos avanços da medicina como a camisinha, as pílulas e os anticoncepcionais, por exemplo, que proporcionaram à mulher autonomia e controle sobre o próprio corpo e a natalidade.
Segundo Scott (1986), estereótipos sexuais são os julgamentos sobre os comportamentos esperados, tanto para homem, quanto para mulher. As funkeiras transgridem esse estereótipo, pois se vestem com roupas justas, e curtas, são objetivas em suas músicas, falam o que querem sem rodeios, e dançam do seu próprio jeito, de maneira muito sensualizada, ou seja, elas não cumprem com esse comportamento que a sociedade espera delas, que sejam obedientes e recatadas. Da mesma forma, os papéis sexuais são os aprendizados de papéis do que é, e do que não é esperado que um homem e uma mulher façam, e que estes papéis correspondam as expectativas da sociedade, no entanto, as funkeiras também rompem com essa expectativa social de serem submissas e assumem o papel dominadoras em relação ao sexo. Assim há a desconstrução dos binarismos, pois não há um único modelo de feminilidade e de masculinidade.
Para alguns autores marxistas, o termo “alienação” pode ser entendido também como “coisificação”. Transforma-se a essência de um trabalhador (ou um corpo) para utiliza-lo para gerar lucro. Por muito tempo o corpo e a sexualidade da mulher têm sido apropriado pela propaganda e pela mídia para lucrar em cima desses. O mercado de consumo é em grande parte controlado por homens cis héteros e, consequentemente, voltado para esse mesmo público, que até os dias de hoje é o que detém maior poder aquisitivo. Essa sexualidade é usada para vender os mais diversos produtos. As marcas de perfume usam modelos, atrizes e cantoras (que se encaixam no padrão de beleza estipulado pelo próprio mercado) para promover suas marcas. Programas de auditório contratam dançarinas (que também obedecem ao padrão: magra, alta, de pele clara) para chamarem a atenção. Programas de esporte também não ficam de fora dessa, vários desses contratam ao menos uma repórter esportiva que também se encaixe no padrão. Até postos de gasolina contratam meninas pelos seus corpos e as dão uniforme curtos e sempre apertados para chamar a atenção dos motoristas. A força de trabalho dessas mulheres, essa que fica um pouco difícil de ser vista por ser tão abstrata, é a sua sexualidade e a imagem de seus corpos. Elas atraem a atenção dos telespectadores, os diretores inserem as mais diversas propagandas a cada 5 minutos de programa, e o lucro dessas propagandas vai em grande parte para os donos da emissora de TV, que investem em mais propaganda.
Contudo, a inserção da mulher no funk permitiu uma nova abordagem e uma reapropriação dessa sexualidade. Para as funkeiras, esse comportamento em relação ao sexo representa um novo modo de assumir uma posição sedutora e dominadora sobre o homem“[...] a funkeira é livre para dizer o que espera do sexo, do seu parceiro, para desafiar a tal virilidade, numa espécie de jogo sexual”. (BONFIM, 2013, p. 8)
Essa postura muitas vezes intimida os homens, eles se sentem afrontados e dirimidos em sua virilidade, o que pode causar hostilidade por parte desses. Fernando Luis Mattos da Matta, o DJ Marlboro, que defende Tati Quebra Barraco no filme, diz que as funkeiras deveriam adotar outra postura:
O funk atinge todas as classes sociais, assim como todas as faixas etárias. Sendo pornográfico, você contribui para a sexualidade precoce dessa juventude. Música atinge a criança. Quando você faz uma música de funk que atinge a criançada em massa, e você coloca palavrão nessa música, você está tendo responsabilidade com aquelas crianças” (MEDEIROS, 2006, p.83).
Denota-se nessa crítica um conteúdo machista, pois como rebate Bonfim:
Em sua defesa, a MC Deize Tigrona alega que já chegou a produzir música politizada, com contestação social, mas que não obteve sucesso. Além de tudo, nos chama atenção ao fato de que o mesmo acontece nas letras de forró (e, diga-se de passagem, nas letras de música de diversos outros ritmos naturalmente brasileiros- ou até mesmo estrangeiros- e que conseguem conquistar sucesso em escala nacional – ou mundial) e, não há toda essa repercussão que há com o funk.”. (BRAGANÇA, 2013, p 4-5).
Como se ressalta na fala acima, a lógica do mercado, tanto nacional quanto internacional, é comercializar conteúdo sexualizado, pois esse é mais lucrativo. Dá-se mais ênfase a esse material, logo é um incentivo a mais para que os artistas o produzam. Contudo a crítica recai sobre o funk por ser um estilo originário da cultura periférica e, assim como o Rap, é posto de lado e tido como uma “não cultura”. Assim como este, o funk é assimilado pela grande mídia e transformado em algo que lhe sirva melhor, como letras mais “suaves”, dúbias, que podem até possuir alguma crítica, mas que fica tão diluída que mal pode ser percebida.
O corpo das mulheres é, então, um objeto usado para a obtenção de lucro. Porém, quando essa mercantilização é feita legitimamente pelas mulheres, não deve ser vista como algo execrável, pois deve haver liberdade para escolha. O objetivo é ascender socialmente, ocupar lugares mais altos, lugares esses ocupados pelos homens. Dessa forma, essa atitude  pode ser também uma forma de desconstruir o sistema patriarcal utilizando dos meios disponíveis para isso.
A questão se solidifica quando se coloca em reflexão o fato de as mulheres estarem no poder e o quanto isso incomoda, pois os homens que se utilizam dos mesmos meios para obtenção de lucro, como os dançarinos e gogoboys, não são expostos a tamanho preconceito, este que sofrem as mulheres, pois eles “podem”.
A mercantilização também pode ser vista como a prostituição do corpo e, entra em questão a forma como são tratadas as “profissionais do sexo”, além é claro da falta de políticas de saúde para lidar com o caso, dessa forma, há uma forte violação dos direitos humanos.
Todavia, há o contraponto, a mercantilização do corpo não é um assunto concluído, existem movimentos feministas que lutam contra a mesma, pois é através dela que se solidificam os padrões de beleza, padrões esses que tiram da mulher a aceitação do corpo natural, pois segundo o sistema, só é aceito aquele corpo que é de determinada forma, literalmente, o que faz com que as mulheres deem a vida para conseguir atingir o objetivo do “corpo perfeito”, sendo que este é para satisfação dos dominadores, o que somente conserva mais ainda, a dominação do homem sobre a mulher.
Não há, portanto, uma resposta definida para a questão: O funk é feminista?
Mas, há problematizações que devem ser feitas, além de tudo, para a reflexão, para a quebra desses tabus e paradigmas, para a desconstrução do preconceito e da alienação que dizem respeito à mulher.
Implicações para a educação escolar.

O funk é, sem dúvida, o estilo musical que mais acessa o cotidiano das crianças, adolescentes e jovens atualmente. Negá-lo é reproduzir preconceitos de classe e ignorar que este movimento já atinge dos pobres a classe média, sem distinção.
Quem trabalha com este público deve buscar dialogar com o que os atinge para poder problematizar, desconstruir e subverter os arranjos tradicionais. No tocante ao gênero, isto cabe tanto quanto outras temáticas. Isto pode e deve ser feito não somente quanto ao tema, mas até mesmo na forma com que as atividades são trabalhadas.

[..] subverter os arranjos tradicionais de gênero na sala de aula inventando formas de dividir os grupos para os jogos ou trabalhos, promovendo discussões sobre as representações encontradas nos livros didáticos ou nos jornais, revistas e filmes consumidos pelas estudantes...”
(LOURO, 1997, p, 124)

Embora os quatro elementos constitutivos de gênero, segundo Scott (1991), os símbolos culturalmente disponíveis, os conceitos normativos, a noção do político e a identidade subjetiva, estejam presentes desde a educação infantil, é neste período que os adolescentes estão no processo de individuação, de acordo com Henri Wallon (1975). Processo este que solidifica identidades, valores e atitudes.Por isso, utilizar o funk, por meio deste documentário, torna-se um precioso instrumento de subversão da lógica binária e potencializa o que Michael Young chama de “Conhecimento poderoso”. 

Apresentação e vídeos complementares:


Referências:

BONFIM, Letícia Laurindo de. Corpo e poder no funk carioca. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos). Florianópolis. 2013. ISSN 2179-510X


BRAGANÇA, Juliana da Silva. Sexualidade feminina: A mulher por ela mesma no movimento funk carioca. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos). Florianópolis. 2013. ISSN 2179-510X

CASTELLS, Manuel. A era da informação: movimento pelos direitos humanos: economia, sociedade e cultura. Vol II São Paulo: Paz e terra, 1999.

FINCO, Daniela; SILVA, Peterson Rigato da; DRUMOND, Viviane. Repensando as relações na Educação Infantil a partir da ótica de gênero. In: GEPEDISC - Culturas Infantis. Culturas Infantis em creches e pré-escolas: estágio e pesquisa. Campinas, SP: Autores Associados, 1a. ed., 2011.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-
estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

_____. Cinema e sexualidade. Revista Educação & Realidade. jan/jun 2008.

MEDEIROS, Janaína. Funk carioca: crime ou cultura? O som do medo e do prazer. São Paulo: Terceiro Nome, 2006

SCOTT, Joan. (1991), Gênero: uma categoria útil de análise histórica. (Tradução de Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila). Recife, SOS Corpo. (sd)

WALLON, Henri. Psicologia e educação da infância. Lisboa: Editorial Estampa, 1975.

YOUNG, Michael. Para que servem as escolas? In: Revista Educação e Sociedade, Campinas. vol 28, n.101. set/dez.2007

Para fazer download do trabalho completo clique aqui

autores do texto acima:


TARZONE, Bruna Flores 
CERQUEIRA, Daniel 
                                                               MOREIRA, Danielle de Mello
BORREGO, Marcos Felippe Radis 
 Para mais trabalhos na Educação clique aqui

Nenhum comentário:

Postar um comentário