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do g1
Raras vezes fiquei tão feliz por ter me tornado um jornalista musical quanto nas oportunidades que tive de entrevistar Rita Lee. E elas foram várias – desde o tempo em que eu era um repórter num jornal mesmo, de papel (acredite: houve uma época onde as pessoas se informavam desse jeito!), na “Folha de S.Paulo”, até mais recentemente no programa que hoje apresento (“Fantástico”), passando, claro, por incontáveis encontros dos meus idos tempos de MTV. Não me lembro de Rita ter me decepcionado em nenhuma dessas vezes. E não digo isso por simples deslumbramento.
Sempre fui fã assumido de Rita. Por questão de uma geração, minha introdução ao seu trabalho não foi pelos Mutantes – banda que fui conhecer justamente depois de já muito admirar seu trabalho solo, pois ainda era criança quando eles estavam no auge – mas pela sua carreira solo. Dela, só tenho boas lembranças. “Tutti frutti” foi uma espécie de analgésico que me ajudou a atravessar a adolescência – e mesmo na sua fase mais pop, onde boa parte do seu público “antigo” começou a desconfiar da credibilidade de Rita (ao mesmo tempo em que uma audiência ainda maior ia sendo conquistada com sucessos como “Lança perfume”, “Saúde”, “Desculpe o auê” e quejandos), eu continuava um admirador fiel.
Se alguém vier falar mal de “Caso sério”, “Ôrra meu” e “Atlântida”, entre outros sucessos duvidosos, vai arrumar confusão comigo. (Podemos até argumentar que a “Rita dos anos 70” – de “Jardins da Babilônia”, “Eu e meu gato”, “Papai me empresta o carro”, “Doce vampiro”, “Mania de você”, e, claro, todo o “Fruto proibido” – tinha uma outra pegada, mas isso seria levar a discussão que quero levantar para outro canto, e sobretudo hoje não posso divagar…).
Levanto toda essa bola para tentar passar para você a dimensão do que significava para mim entrevistar Rita Lee. E não apenas da primeira vez que isso aconteceu, mas em todas as entrevistas que fiz com ela. Ser chamado por alguém que sempre foi uma referência tão forte para mim de “Zequinha”, como acabou acontecendo com o passar dos anos, era não apenas um sinal de intimidade – conquistada justamente nesses encontros –, mas um discreto elogio não-intencional: era como se Rita tivesse me dado a honra de fazer parte de um círculo muito exclusivo de pessoas que ela resolvia chamar por um diminutivo carinhoso. Coisas de um fã que de repente vira repórter e às vezes não sabe direito qual de seus dois lados é mais forte…
Por uma amiga em comum – Mônica Figueiredo, que foi minha diretora na “Capricho”, em meados dos anos 90 – tive ainda a chance de conhecer Rita mais de perto. A amizade das duas vinha de outras décadas – e eu, que era não apenas um editor-chefe dedicado, mas também um admirador de Mônica, peguei uma deliciosa (e frutífera) “carona” nesse convívio. O que só reforçou toda o amor e o respeito que eu tinha por Rita Lee.
De tantas coisas que ela tem para se tirar o chapéu, talvez a que mais me encanta até hoje é sua honestidade. Rita usou essa carta na manga durante toda sua vida – e não apenas em sua música. Em todas as entrevistas que fiz com ela, era isso que mais que encantava: para câmera (ou apenas para o repórter), ela dizia o que pensava – mesmo que fosse uma revelação que pudesse pesar contra ela. Entre tantas passagens assim, lembro-me de umas boas que saíram de uma ocasião em 2004 – um feliz encontro em que Rita estava extremamente à vontade.
Alguns pontos altos:
“Eu experimentei Botox outro dia… Ficou mais leve, mas o combinado era eu ficar parecida com a Gisele Bündchen”.
“Me colocaram um pino de titânio – eu tenho um lado bem tortinho aqui, ó – mas eu gosto dele…”.
“Deixa cair… tá bom… eu não posso reclamar… depois de tudo que eu fiz Zequinha, meu filho…”.
Como não gostar de uma mulher assim? Todas essas frases, porém – e todas as outras que já ouvi (direta ou indiretamente) Rita dizer – ficaram menores quando, no sábado passado, durante o que foi anunciado como seu “show de despedida dos palcos”, Rita Lee disse o seguinte:
“Vocês não têm o direito de usar a força na meninada – que não tá fazendo nada! Cadê o responsável, eu quero falar! Esse show é meu, não é de vocês! Esse show é minha despedida do palco, e vocês continuam tendo que guardar as pessoas – não agredir. Seus cachorros – coitados dos cachorros…”.
A, hum, “colocação” não foi dita, claro, em uma entrevista íntima, mas diante de uma plateia de milhares de sergipanos (o show foi em Aracaju), que foi surpreendida pelo que parecia ser uma revista de policiais à procura de drogas. Rita – que, como ela mesma disse então, é do tempo da ditadura, ficou deveras incomodada com o que ela julgou ser truculência na ação – para não falar da arbitrariedade da própria atitude. (Já imaginou se o mesmo “choque de ordem” fosse determinado em outros tantos shows e festivais que agora acontecem no Brasil? De destino obrigatório para artistas em ascensão e já consagrados, passaríamos à escala a ser evitada – para não dizer “motivo de piada” anacrônica – para o melhor da música atual. Mas eu, enfim, divago…). Diante do que via, Rita não se conteve – soltou o verbo.
Seu discurso foi bem maior – e bem mais forte – do que o breve trecho que citei acima. Além dessa reportagem que você pode conferir aqui mesmo no G1, não é nada difícil encontrar na própria internet dezenas de outros registros (alguns até mais completos) de seu discurso. Mas nem é preciso analisar muito seu texto para entender porque o protesto de Rita – que com propriedade impecável insistia: “Esse show é meu, não é de vocês!” – fez com que ela fosse detida pela própria polícia. “Cachorros”, a bem dizer, foi a palavra mais “carinhosa” que ela usou para criticar os homens da lei. Talvez se ela tivesse ficado por aí, a confusão teria sido abafada. Mas aí Rita mandou um “filhos da puta”. E pronto…
Em seu depoimento oficial, Rita Lee disse que agiu movida pelo “calor das emoções” – certamente um resumo bem vago para definir a somatória de todas as experiências de cantora nessa sua trajetória de anos – de fato, ela passou por toda a montanha-russa de mudanças políticas e sociais, que toda uma geração (talvez duas), que hoje faz o que quer (seja num show de rock, no meio de uma multidão, ou no quintal da sua casa, na frente de seus pais), nem desconfia que essa mesma liberdade teve que ser muito batalhada. E por gente como Rita Lee! Isso, como você pode imaginar, deixa uma marca nas pessoas. Do seu lado, a polícia de Sergipe soltou uma nota dizendo que não houve, naquela noite, nenhuma ação que justificasse “os insultos proferidos pela cantora Rita Lee durante sua apresentação”.
Observando apenas as imagens, não é muito simples decidir quem estava mais com a razão. O que me parece é que a situação criada tem muito pouco a ver com o que estava acontecendo em si, e mais com os registros de coisas passadas. Rita, como ela mesmo disse – e eu acabei de ressaltar aqui – tem sua cota de experiências com truculência militar e repressão de todo tipo na história de sua carreira (que, como toda boa roqueira, se confunde com sua própria história de vida). E a própria polícia – ainda que não especificamente de Sergipe (cujo passado específico desconheço) – sabe que tem na sua história momentos de exagero que em nada contribuíram para criar uma imagem positiva – não só com a geração de Rita, como com as que vieram depois dela. As duas coisas misturadas, numa noite de (citando Rita) fortes emoções, deu nisso!
Poderia ter sido apenas mais um capítulo de um longo livro – que felizmente nunca acabará de ser escrito – chamado: “It’s ony rock n’roll but I like it”. Mas a detenção de Rita ganhou, inevitavelmente uma repercussão nacional – e em mais de uma roda de conversa que participei neste domingo, dividiu opiniões. Como provoquei logo de início – ali acima, no título do post de hoje – eu acho sim que Rita Lee pode dizer o que quiser. Aliás, qualquer cidadão pode ter o direito de dizer o que quiser – até mesmo Rafinha Bastos. Não estou com isso, vale explicar, comparando os dois artistas, muito menos o conteúdo do que eles disseram (Rita na noite de sábado, e Rafinha na sua infeliz – e o que seria última – participação no “CQC”). O que é importante – e aí a analogia faz sentido – é que cada um que diz o que quer deve ter noção do peso de suas palavras. E eu não tenho nenhuma dúvida que Rita sabia exatamente o quanto as suas pesavam.
No contexto de tudo que foi dito, não vejo as palavras da cantora como uma provocação – mas sim uma reação. Não estou, de maneira alguma, desafiando eu também as autoridades, nem questionando o que define a sensibilidade desses profissionais (públicos, é bom lembrar) a ponto de considerar um ou outro ataque como “desacato”. A lei e suas interpretações estão aí para isso mesmo – e imagino que o processo vá se desenrolar nos próximos dias, como é de se esperar. O que quero mais hoje aqui é saber da sua opinião: Por tudo que ela representou esses anos todos para mim – e eu diria (sem medo de errar) até para o Brasil! -, eu digo mais uma vez: Rita Lee pode dizer o que quiser. Será que você colocaria um ponto de interrogação nessa frase?
Enquanto você pensa, deixa eu mandar um “correio elegante” para a Rita? Aqui vai: “Meu amor, justamente por episódios como os deste fim-de-semana que eu torço para que essa conversa de despedida dos palcos não seja a sério… Diz pra mim que você tá só dando uma de Frank Sinatra, vai? E que a gente ainda vai ter muitas e muitas chances de se despedir de você? Bejo!”.
O refrão nosso de cada dia: “The drugs don’t work”, The Verve.
Ok, eu admito: essa canção não é exatamente uma raridade – nem uma faixa obscura para a qual eu quero chamar sua atenção (como é o caso de boa parte das indicações que você conhece por aqui). Mas eu a ouvi por acaso neste fim-de-semana – e por uma (sempre) estranha associação de ideias, eu conectei uma das músicas mais bonitas do Verve (na verdade, uma das músicas mais bonitas que já foram feitas sobre degeneração e o fim inevitável que espera por todos nós – wow!), com os eventos descritos no post acima. Se você já a conhece (como eu acho que é o caso), aproveite para ouvi-la de novo. Se nunca a escutou, desculpe: ela vai fazer você chorar.
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