Autor: Nelson Dinis
Em “Homofobia na perspectiva dos
Direitos Humanos e no contexto dos estudos sobre preconceito e discriminação”,
o juiz federal brasileiro Roger Raupp Rios traz uma interessante
problematização em relação ao termo homofobia. De uma forma geral, ela é
definida como o preconceito e a discriminação em relação às pessoas
homossexuais, mas Rios (2009), ao se debruçar sobre o conceito, nos lembra que
sua apropriação no discurso acadêmico se deu a partir de uma condensação da
palavra homosexualphobia, usada nas pesquisas do psicólogo americano George
Weinberg no início dos anos setenta do século passado. Todavia, Rios observa
também que foi a proposição do termo a partir da experiência masculina que
originou “a proliferação de outros termos objetivando designar formas
correlatas e específicas de discriminação, como putafobia (prostitutas),
transfobia (travestis e transexuais), lesbofobia (lésbicas) e bissexualfobia
(bissexuais)” (RIOS, 2009, p. 60).
linguagem e dos preconceitos implícitos nela. Como já tivemos oportunidade de ressaltar em texto anterior (DINIS, 2008), a linguagem é também um fator de exclusão e de expressão de preconceitos, principalmente nas línguas latinas, nas quais a conformidade com as regras tradicionais e pretensamente neutras da linguagem nos obriga a utilizar termos masculinos como signos genéricos referentes a mulheres e homens. Autoras que trabalham como uma perspectiva feminista, como a brasileira Guacira Lopes Louro (1997) e a espanhola Monserrat Moreno (1999), têm buscado alternativas a partir do uso concomitante da forma feminina e da forma masculina. Mesmo a sigla GLBT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais), utilizada pelos movimentos em prol da diversidade sexual, privilegiou durante muitos anos a precedência do termo masculino “gays” (que no Brasil, ao contrário do seu uso na língua inglesa, tem sido utilizado geralmente para referir a homens homossexuais), sendo somente nos últimos anos, que a partir da crítica feminista, foi adotada a forma LGBTT. É evidente que não há solução definitiva para o problema, pois poderíamos dizer que as formas mais desafiadoras da sexualidade normativa, como as experiências afetivo-sexuais de pessoas bissexuais, travestis e transexuais continuam no fim da sigla. Mas este é um eterno embate de resistência aos limites da linguagem, pois aprendemos, com Roland Barthes (1989), que infelizmente a função da linguagem não é comunicar, mas nos sujeitar, nos obrigar a dizer. Nesse sentido, a linguagem seria fascista, pois mais do que nos impedir de falar, nos obriga a dizer utilizando suas formas convencionalizadas.
Os termos homossexualidade e
homossexual também poderiam ser questionados, pois, de acordo com os estudos
sobre a sexualidade conduzidos pelo filósofo francês Michel Foucault (1988),
somente no fim do século XIX é que os termos apareceram no discurso médico como
formas patologizantes de se referir a experiências afetivo-sexuais entre
pessoas do mesmo sexo. O psicanalista brasileiro Jurandir Freire Costa propõe a
substituição desses termos patologizantes pelo termo “homoerotismo”, pois,
segundo o autor, resistir a tais terminologias implica em resistir também à
carga negativa com que a ciência e a cultura vêm sobrecarregando tais termos
(COSTA, 1992).
Questionar os limites e os
preconceitos no uso da linguagem constitui também um exercício de resistência a
processos de discriminação e exclusão e devem ser encorajados no espaço da
educação. Um conceito é sempre uma tentativa de simplificar por meio de uma
palavra, criada em um determinado contexto histórico-cultural, uma complexidade
de experiências, no caso da sexualidade, uma complexidade de experiências com
nossos corpos, com nossos prazeres e com outras pessoas. No entanto, questionar
determinados conceitos nem sempre implica em desfazer-se completamente deles,
nem negar sua utilidade e sua necessidade em determinados contextos
específicos, o que inviabilizaria a possibilidade de qualquer pesquisa na área
de Ciências Humanas, já que a maioria dos conceitos com as quais trabalhamos,
sendo um deles o próprio conceito de sujeito, são problemáticos. Reconhecer
conceitos como problemáticos implica em reconhecer a linguagem como construção
históricocultural, negando sua pretensa neutralidade e universalidade, mas não
implica necessariamente inviabilizar todas as pesquisas que trabalham com
categorias que possam ser questionadas, embora recentemente essa tenha sido uma
atitude ingênua bastante presente na crítica acadêmica na área das Ciências
Humanas. Homossexualidade e homofobia têm sido termos largamente utilizados
pela mídia, pelos movimentos sociais e pelo discurso acadêmico, assim, mesmo
com todas as ressalvas que já apontamos anteriormente, optamos por utilizá- los
neste artigo.
A homofobia se tornou, no mundo
contemporâneo, um dos últimos preconceitos ainda tolerados. Qualquer brasileiro
(a) pode se lembrar facilmente de vários nomes da política nacional ou dos
movimentos de defesa dos Direitos Humanos que defendem publicamente o direito
das minorias étnico-raciais, das mulheres, das (dos) presidiárias (os), dos
(as) sem-terra, das pessoas com necessidades educativas especiais, mas que se
escondem quando o assunto em pauta é o combate à violência ou a luta pelos
direitos de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Na atualidade
poucas pessoas ousariam expressar publicamente formas de sexismo contra as
mulheres, ou formas de racismo que incentivem explicitamente o preconceito
contra a população negra, contra a população judaica, contra a população
indígena, ou outras minorias étnico-raciais. No entanto, dizer publicamente não
se simpatizar ou mesmo odiar pessoas homossexuais ainda é algo não só tolerado,
como constitui também em uma forma bastante comum de afirmação e de
constituição da heterossexualidade masculina. O pesquisador americano Donald
Sabo analisa, por exemplo, como a homofobia é um dos mecanismos utilizados nas
práticas esportivas na escola para ensinar jovens atletas a desenvolver e
provar sua “masculinidade”:
Lembro-me do seguinte
episódio dos meus dias como jogador de futebol na escola de segundo grau: um
garoto do segundo ano chamado Brian, um rapaz grande, mas gorducho, carecia de
força física e do “instinto assassino” que, segundo nos ensinavam, era preciso
para ser um bom jogador. Num dia quente e úmido, o treinador Shumock decidiu
dar uma lição naquele rapaz. Chamou todo o grupo de defesa e obrigou o Brian a
bloquear cada um de nós, um depois do outro. O tempo inteiro, o treinador o
atormentava: “Quantas irmãs que você tem em casa, Brian? São seis ou sete?
Quanto tempo demorou sua mãe para descobrir que você era menino, Brian? Quando
foi que você deixou de usar vestidos como suas irmãs, Brian? Talvez o Brian
gostaria de fazer uns biscoitos para nós amanhã, meninos. Você é mole, Brian,
talvez mole demais para este time. O que vocês acham, meninos, O Brian é mole
demais para nosso time?”. A provação continuou durante uns dez minutos, até o
Brian desmoronarse, exaurido e chorando. O treinador tinha vencido. Tive pena
de Brian, talvez ele não fosse uma “fera” de bom jogador, mas estava lá, suando
e se maltratando fisicamente como todos nós. No entanto, eu percebia que “ser
mole” tinha de ser evitado a qualquer custo. Em última instância, me aliava com
o treinador e o resto do time, me identificava “para cima” com a hierarquia
masculina, em solidariedade com o time, e não “para baixo” com a
vulnerabilidade e o sofrimento de Brian. Hoje eu sei que as mensagens
homofóbicas do treinador ficariam comigo muito tempo, muito tempo depois das
lágrimas de Brian secarem no sol daquele dia quente. (SABO, 2002, p. 38-39).
Na escola a homofobia se expressa por
meio de agressões verbais e/ ou físicas a que estão sujeitos estudantes que
resistem a se adequar à heteronormatividade, conceito criado pelo pesquisador
americano Michael Warner (1993) para descrever a norma que toma a sexualidade
heterossexual como norma universal e os discursos que descrevem a situação
homossexual como desviante. No contexto educacional, o termo bullying tem sido
utilizado para nomear a violência sofrida por alunos (as) no ambiente escolar,
e o termo bullying homofóbico tem sido utilizado para nomear especificamente a violência
sofrida por alunas (os) gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Um
dos primeiros estudos sobre bullying foi desenvolvido no fim dos anos de 1970,
pelo norueguês Dan Olweus, que define o termo como a exposição repetitiva de um
(a) estudante a ações de agressão (físico e/ou verbal) por parte de uma ou mais
pessoas com a intenção de infringir dano ou desconforto sobre a vítima (OLWEUS,
1993). Na escola o bullying homofóbico tem resultado na evasão escolar de
estudantes que expressam identidades sexuais e de gê- nero diferentes da norma
heterossexual, e mesmo nas tentativas de suicídio de adolescentes em conflito
com sua identidade sexual e de gênero, devido aos preconceitos e a
discriminação sofrida no espaço escolar. Uma das principais vítimas no processo
de evasão escolar também são as adolescentes travestis e as (os) adolescentes
transexuais que dificilmente conseguem terminar seus estudos, sendo forçadas
(os) a abandonar a escola, já que diferentemente de adolescentes gays e
lésbicas, têm mais dificuldade em esconder sua diferença, tornando-se as
vítimas mais visíveis dessa violência escolar.
Mas a situação de estudantes gays e
lésbicas que tentam esconder sua orientação sexual também não é mais fácil já
que o silenciamento e o ocultamento de sua sexualidade é também uma forma de
violência. Como lembra Guacira Louro:
Ao não falar a respeito
deles e delas, talvez se pretenda ´eliminá- los`, ou, pelo menos, se pretenda
evitar que os alunos e as alunas ´normais` os/as conheçam e possam desejá-los/as.
Aqui, o silenciamento – a ausência da fala – aparece como uma espécie de
garantia da ´norma`. (LOURO, 1997, p. 67-68).
Esse silenciamento, que se traduz também na omissão quando aparecem os casos de violência física ou verbal sofrida por estudantes que expressam sua diferença sexual e de gênero, é compartilhado pelas (os) professoras (es) que evitam discutir o tema da diversidade sexual e de gênero nas escolas. A pesquisadora canadense Deborah Britzman descreve muito bem as fantasias envolvidas no medo de professores (as) em abordar o tema da diversidade sexual no espaço escolar:
...existe o medo de que a
mera menção da homossexualidade vá encorajar práticas homossexuais e vá fazer
com que os/as jovens se juntem às comunidades gays e lésbicas. A ideia é que as
informações e as pessoas que as transmitem agem com a finalidade de “recrutar”
jovens inocentes. (...) Também faz parte desse complexo mito a ansiedade de que
qualquer pessoa que ofereça representações gays e lésbicas em termos simpáticos
será provavelmente acusada ou de ser gay ou de promover uma sexualidade fora da
lei. Em ambos os casos, o conhecimento e as pessoas são considerados perigosos,
predatórios e contagiosos. (BRITZMAN, 1996, p. 79-80).
Em “A atriz, o padre e a psicanalista
– os amoladores de faca”, o psicólogo brasileiro Luis Antonio Baptista (1999)
utiliza o conceito de “amolador de faca” para denunciar a cumplicidade social
com a violência expressa, às vezes, no discurso da mídia, no discurso religioso
e no discurso de saberes com a Psicologia e a Psiquiatria, mas que podemos
aplicar também ao discurso educacional:
O fio da faca que
esquarteja, ou o tiro certeiro nos olhos, possui aliados, agentes sem rostos
que preparam o solo para esses sinistros atos. Sem cara ou personalidade, podem
ser encontrados em discursos, textos, falas, modos de viver, modos de pensar
que circulam entre famílias, jornalistas, prefeitos, artistas, padres,
psicanalistas etc.Destituídos de aparente crueldade, tais aliados amolam a faca
e enfraquecem a vítima, reduzindo-a a pobre coitado, cúmplice do ato, carente
de cuidado, fraco e estranho a nós, estranho a uma condição humana plenamente
viva. (BAPTISTA, 1999, p. 46).
O texto, escrito nos anos de 1990,
remetia à três situações reais envolvendo a declaração de uma atriz em um
programa televisivo dominical, a presença de uma psicanalista em outro programa
televisivo juvenil de auditório e o discurso de um padre católico. Apesar do
autor não identificar as personagens, a personagem da atriz parece remeter a
uma participação da atriz global Cássia Kiss em um programa televisivo
dominical no qual a atriz teria expressado seu desejo em não ter um filho
homossexual. Mais recentemente a cantora Cláudia Leite e a modelo Isabeli
Fontana também teriam se envolvido em uma situação polêmica parecida ao dar
declarações semelhantes para a mídia sobre o desejo de não ter um filho
homossexual.
No programa dominical, uma
artista famosa, apaixonada pela natureza e pela poesia, afirma que não
admitiria ter um filho homossexual. Justificando não ter preconceitos, já que é
atriz, afirma ser esse tipo de pessoa o produto de um relacionamento familiar
que não funcionou bem. Alguma coisa anda mal e seu filho está fadado a ser
infeliz. A atriz apaixonada pelos poetas e pela ecologia amolou sensivelmente
uma faca. (BAPTISTA, 1999, p. 48).
Os discursos da Psicologia, da
Psicanálise e da Psiquiatria também têm sido utilizados para justificar o
preconceito e a discriminação em relação à diversidade sexual, embora a
homossexualidade tenha sido retirada da lista de distúrbios mentais em 1973,
pela American Psychiatric Association, e em 1985, pela Associação Médica
Brasileira. O Conselho Federal de Psicologia também tem tido forte engajamento
nos últimos anos nas políticas voltadas à luta pelos direitos das minorias
sexuais e de gênero; estabelecendo, desde março de 1999, normas éticas para a
atuação de psicólogas (os) em relação à questão da orientação sexual,
“considerando que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio, nem perversão”
e também que os “psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que
proponham tratamento e cura das homossexualidades” (Conselho Federal de
Psicologia, 1999, s.p.). No entanto, há ainda profissionais da área da
psicologia que às vezes oferecem em sites da internet ou na privacidade dos
consultórios tratamento para a homossexualidade. Jurandir Freire Costa (1995) e
Graciela Haydée (1999) analisam a difícil relação entre a teoria psicanalítica
e o comportamento da homossexualidade, o que produziu ao mesmo tempo conceitos
normatizantes sobre o tema e em outros momentos conceitos libertários, sendo os
últimos apropriados por parte do próprio discurso utilizado pelos movimentos de
afirmação das minorias sexuais e de gênero. A pesquisadora americana Judith
Butler (2004) também aponta a presença do discurso psicanalítico em parte da
argumentação contra a adoção de crianças por casais homossexuais, ou mesmo
contra o PAC (Pacto de Solidariedade Civil), que constituiu uma alternativa de
reconhecimento de direitos para casais homossexuais no território francês. O
discurso da personagem psicanalista, tão bem descrito no texto de Luis Antonio
Baptista, resume alguns dos principais argumentos utilizados por essa
apropriação normativa dos conceitos da Psicologia:
Em um programa para jovens
cujo tema é sexo, uma psicanalista é entrevistada por adolescentes. Uma garota
pergunta-lhe sobre o homossexualismo. A psicanalista assinala que os
adolescentes não precisam temer, porque tendo uma infância saudável, um bom relacionamento
com o papai e com a mamãe, o Édipo será resolvido, nada acontecerá. A
psicanalista afirma também que o homossexualismo não é uma doença, e sim um
sintoma, uma parada no desenvolvimento psicossexual, uma tentativa inconsciente
de resolvê-lo. Os adolescentes escutam, sérios, a especialista falar sobre os
mistérios da alma. Após calorosos aplausos, os adolescentes paulistanos
aprenderam que o homossexual é uma angustiada reedição de uma criança que
precisa do amor do papai e da mamãe. (BAPTISTA, 1999, p. 47).
Outros (as) competentes amoladores de
facas são as (os) representantes de alguns setores religiosos. Em “A igreja e
questão homossexual no Brasil”, o ativista do movimento LGBTT e também
pesquisador Luiz Mott analisa historicamente a presença do discurso homofóbico
nas religiões cristãs no Brasil, lembrando que muitos cristãos “pensam e agem
em relação aos homossexuais, como se ainda vivêssemos sob o chicote e a
fogueira da Santa Inquisição” (MOTT, 1999, p. 38). No Congresso Nacional
Brasileiro, representantes da política ligados à igreja católica e às igrejas
evangélicas têm se mobilizado contra a aprovação de direitos civis das minorias
sexuais como a criminalização da homofobia, a união civil de casais
homossexuais e o direito de adoção de crian- ças por parte das famílias
homoparentais. Associações entre o comportamento homossexual, a promiscuidade e
a causa de catástrofes naturais associadas a mudanças climáticas e o
aparecimento de novas doenças também são comuns em programas televisivos comandados
por religiosos durante as madrugadas. É neste sentido, que a fala do padre,
descrita no texto de Luis Antonio Baptista, descreverá também a emergência da
AIDS, que já foi chamada no passado de “câncer gay”:
Já ouvi de um jovem essa
sentença: “Deus sempre perdoa; os homens, algumas vezes; a natureza, nunca”. No
caso da AIDS, trata-se de uma decorrência da própria natureza que,
profundamente atingida, reage normalmente, sem que Deus se veja na obrigação de
alterar suas leis por um milagre. E esse castigo indireto de Deus visa ao bem
do homem, à volta a uma vida saudável. Sem dúvida podemos dizer que tal
castigo, no qual se manifesta a “ira de Deus” (foi o primeiro nome dado a
AIDS), lembra Jesus empunhando o látego no templo que os mercadores profanavam.
E poderemos acaso profanar impunemente o templo do nosso corpo, que deve ser a
habitação do Espírito Santo? Deus perdoa sempre os que desejam perdão, mas
castiga-os, se necessário, deixando agirem as próprias leis naturais.
(BAPTISTA, 1999, p. 48).
A atriz, a psicanalista e o padre
compartilham, segundo Baptista (1999, p. 49), “a presença camuflada do ato
genocida. São genocidas, porque retiram da vida o sentido de experimentação e
de criação coletiva. Retiram do ato de viver o caráter pleno de luta política e
o da afirmação de modos singulares de existir”. Embora não empunhem a arma, nem
a faca que provoca diariamente o assassinato de pessoas que representam as
minorias sexuais no Brasil, eles (as) são os (as) amoladores (as) de facas que
colaboram indiretamente para tal genocídio, já que entender a homossexualidade
como pecado, profanação do corpo e da sexualidade, como anormalidade e desvio
de comportamento – discursos importados da religião, da mídia e das ciências
psicológicas - são também as principais justificativas utilizadas por
assassinos em série ou grupos de extermínio de travestis, transexuais,
bissexuais, gays e lésbicas no Brasil.
É interessante que em nenhum momento
do texto de Luis Antonio Baptista seja mencionada explicitamente a área da
educação. No entanto, educadoras e educadores costumam ser também competentes
amoladores de facas. Em uma pesquisa anterior que realizamos com estudantes de
Pedagogia de uma universidade pública, pudemos observar como conceitos
normatizantes importados do discurso religioso e do discurso da Psicologia são
às vezes apropriados por futuros (as) professores (as) para justificar atitudes
preconceituosas e discriminatórias em relação à diversidade sexual e de gênero
(DINIS; CAVALCANTI, 2008). Isso constitui um fator preocupante já que a escola,
junto com a família e a mídia, constitui um forte agente na construção de parte
significativa dos conceitos e preconceitos das novas gerações. E parte desses
conceitos e preconceitos remete justamente às novas identidades sexuais e de
gênero e aos novos modelos familiares que habitam o mundo contemporâneo.
Guacira Louro nos lembra que:
A escola é, sem dúvida, um
dos espaços mais difíceis para que alguém “assuma” sua condição de homossexual
ou bissexual. Com a suposição de que só pode haver um tipo de desejo sexual e
que esse tipo – inato a todos – deve ter como alvo um indivíduo do sexo oposto,
a escola nega e ignora a homossexualidade (provavelmente nega porque ignora) e,
desta forma, oferece poucas oportunidades para que adolescentes ou adultos
assumam, sem culpa ou vergonha, seus desejos. O lugar do conhecimento
mantém-se, com relação à sexualidade, o lugar do desconhecimento e da
ignorância. (LOURO, 2000, p. 30).
Essa ignorância sobre o tema, assim
como a presunção assumida por professoras (es) de que a escola só deva discutir
assuntos universais, sendo somente a norma da heterossexualidade concebida como
natural e universal, exclui a sexualidade de estudantes LGBTTs e faz com que a
diversidade sexual e de gênero seja um tema excluído do currículo, mesmo das
aulas de Educação Sexual. Porém, como observa Britzman (1996, p. 92), “em vez
de ver a questão da homossexualidade como sendo de interesse apenas para
aquelas pessoas que são homossexuais, devemos considerar a forma como os
discursos dominantes da heterossexualidade produzem seu próprio conjunto de
ignorâncias tanto sobre a homossexualidade quanto sobre a heterossexualidade”.
A dificuldade em falar sobre a diversidade sexual é também uma dificuldade de
educadores e educadores em conhecer a própria sexualidade e suas múltiplas
possibilidades de obter prazer. Questionar a sexualidade, seja ela hetero ou
homossexual é entendê-la como uma construção em constante negociação com o
outro e com o social e esse pode ser um passo fundamental para problematizar e
pluralizar a sexualidade, compreendendo o processo que leva à formação das
diversas identidades e desconstruir os pressupostos da heteronormatividade.
Outra justificativa bastante comum
utilizada por educadoras e educadores para excluir o tema da diversidade sexual
das discussões do currículo é a ideia de que as identidades sexuais pertencem
ao domínio da vida privada. Para Britzman:
Este mito afirma, ao mesmo
tempo, uma noção duvidosa de privacidade: que aquilo que a pessoa “faz”
privadamente deve ter pouca consequência pública. [...] Além disso, a
insistência de que a sexualidade deva ser confinada à esfera privada reduz a
sexualidade às nossas específicas práticas sexuais individuais, impedindo que
concebamos a sexualidade como sendo definida no espaço social mais amplo,
através de categorias e fronteiras sociais. (BRITZMAN, 1996, p. 80).
Reduzir as identidades sexuais à vida
privada também tem sido o argumento capcioso utilizado por escolas religiosas,
mesmo em países progressistas em relação aos direitos das minorias sexuais,
como o Canadá, para proibir educadores (as) de falarem sobre diversidade sexual
e de gênero. Dessa forma, as escolas não expressam explicitamente seus
preconceitos religiosos em relação ao tema e, ao mesmo, evitam infringir a
Canadian Charter of Rights and Freedom, que desde 1982 já proibia e punia
discriminações baseadas na orientação sexual. No entanto, a falácia do
argumento da privacidade da vida sexual fica exposta no fato de que as únicas
identidades sexuais que não são realmente faladas, que são reduzidas ao mundo
da vida privada, são aquelas que divergem da norma heterossexual. O pressuposto
da heterossexualidade encontra-se explicitamente exposto nas aulas de Ciência
que abordam a sexualidade apenas pelo viés reprodutivo, pelos livros de
literatura que abordam apenas o amor romântico heterossexual, e também pelo
modelo da família nuclear que é constantemente reproduzido nos livros
didáticos.
Esse cenário de exclusão apela para
que o tema da diversidade sexual e de gênero seja incluído no currículo de
formação de novas professoras e professores para que possam futuramente
desenvolver estratégias de resistência ao currículo heteronormativo. A omissão
e o silenciamento significam pactuar com a violência exercida contra estudantes
gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. A escola deve ser também
um espaço de formação de cidadania e de respeito aos direitos humanos, assim as
(os) docentes devem ser encorajados a assumir sua responsabilidade no combate a
todas as formas de preconceitos e discriminação que permeiam o espaço escolar.
A navalha de Occam de educadores e educadoras, baseada no princípio da
pluralidade sexual desnecessária, exclui do currículo as representações de mundo
de estudantes gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, que resistem
à matriz normatizante da sexualidade branca, ocidental, de classe média e
heterossexual. Mas não podemos esquecer que navalhas também podem ser usadas no
assassinato das minorias sexuais no Brasil, o que pode fazer de educadoras e
educadores sutis amoladores de navalha diplomados e especializados.
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Notas
1 Nilson Fernandes Dinis: Professor adjunto no
Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR),
Brasil. Pesquisador bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq). É também coordenador do grupo de pesquisa Diversidade em
Educação. E-mail: ndinis@ufscar.br
RESUMO Provocado pelo conceito de “amolador de facas”, criado pelo psicólogo Luis Antonio Baptista, este artigo busca discutir alguns aspectos da violência contra estudantes LGBTT e a omissão do tema da diversidade sexual e de gênero no currículo escolar como forma oculta de homofobia e da cumplicidade de educadores e educadoras com essa violência. Palavras-chave: homofobia; educação; diversidade sexual.
ABSTRACT Being motivated by the concept of “knife sharpener” created by the psychologist Luis Antonio Baptista, this article aims to discuss some aspects of the violence against LGBTT students and the omission of the topic of gender and sexual diversity in schools curriculum as a hidden way of homophobia and as a sign of educators’ complicity in this violence. Keywords: homophobia; education; sexual diversity.
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